Memorandum
João-Luis de Medeiros
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A SAGRADA SIMPLICIDADE DA INOCÊNCIA
A memória humana é uma espécie de “diário de bordo” da nossa existência. Ao longo da vida, vamos ficando cativos da sensação de que o tempo é companheiro que veio do longe e que se deleita na planície do presente, sem sequer descalçar as sandálias do passado...
Quando há dias observava o irrequietismo da petizada, numa dessas gigantescas lojas populares onde a ilusão chinesa do preço barato faz parte do milagre pré-fabricado para o natal ocidental, senti um arrepio de saudade da famosa “noite-das-montras”, em Ponta Delgada. Para as famílias pobres, como era o nosso caso, aquela era considerada a noite das “dores de carteira”. Para as crianças do meu tempo, aquela era a noite mágica: o imparável acesso da pequenada até ao beiral das vitrinas, ilustrava o ritual da inocência atarefada na sua espontaneidade democrática. Depois, é que a realidade nos ia ensinando que afinal o “santaclôse” não era o simpático bonacheirão da igualdade distribuitiva que a imaginação sonhava. Mas isso já é estória antiga que continua a ensombrar a realidade do quotidiano...
Até meados dos anos 50 do século passado (estou a limitar a minha referência à ambiência campestre da periferia de Ponta Delgada) os nossos presépios ainda apresentavam sinais da autenticidade emocional recebida da herança franciscana: simplicidade, glorificação da pobreza material, centralidade temática na cena da sagrada familia – tudo isso envolvido pela meiga proximidade do burrito e da vaquinha, sem esquecer o exemplo de humildade iluminada praticada pelos reis-magos...
Naquele tempo, a maioria das casas rurais não disponha ainda de luz eléctrica nem de água canalizada; nem a privacidade familiar disponha de ferramentas sofisticadas de auto-defesa. A alegria popular não pedia licença para entrar nos lares, onde a pobreza era perfumada pelos galhos de eucalipto. Naquele tempo, a alegria natalícia irradiava claridades: era como uma lanterna mágica que contrariava o sombreado da pobreza rural.
Na verdade, o dinheiro não dava para adquirir superfluidades. Mas as “serrilhas” poupadas durante o ano davam para renovar parte da nossa colecção de bonecos de Vila Franca do Campo. Por outro lado, os aromas, as cores, o traçado ladeirento dos acessos ao presépio tinham de prever o efeito visual da ditadura da sombra resultante dos improvisados candeeiros de petróleo que, mesmo assim, emprestavam realce à policromia oferecida pelas velas de cera.
Ora como lá em casa eu era o mais velho dos irmãos, a partir dos dez anos fiquei responsável pela preparação dos materiais e consequente feitura do nosso presépio: colorir a serradura, e seleccionar os bonecos; arranjar musgo fresco e resistente; escolher as verduras e os pedregulhos vermelhos para montar a cena da natividade; desenhar e recortar a estrela do oriente... sempre de “olho aberto” ao nosso cachorro - “colarinho” - para não escangalhar o presépio com a súbita excitação aromática e visual do cenário...
Ah! Já me lembro: na nossa casa, não havia um claro consenso àcerca do perfil natalício da “árvore de natal”. A questão não era tanto a árvore em si, mas talvez a “despesona” exigida pela sua vocação essencialmente ornamental. Além disso, havia a discutível percepção de que a presença imperial duma árvore de natal contribuia para a marginalização do presépio...
Naquela noite grande, o meu presépio era “o melhor” do meu mundo... Tudo ali fora preparado para enaltecer a humildade da natividade centrada na sagrada família. O resto era trabalho para a imaginação: as ruelas com peregrinos, os ranchos folclóricos, as ovelhinhas indiferentes ao reboliço dos pastores que iam ao encontro da “boa-nova”, enfim, tudo aquilo parecia caminhar na mesma direcção da caravana dos reis magos...
O Menêne mija? O Menêne mija! – era o slogan mais ouvido naqueles dias. Não admira que quando chegava à hora da “missa do galo”, a maioria do pessoal já sentia os “calores” oferecidos pelos licoristas da alegria. E até o prior da freguesia, transportando o menino nas meigas palhinhas, fazia esforço para verbalizar junto dos fiéis: “beija, beija, beija... o menino.” E todos aguardavam a sua vez para tocar os lábios naquele lindo bonequinho, o nosso Menino Jesus que nascera em Belém...
Parece que ainda oiço gente a entoar melodias que fazem parte do nosso patrimonio emocional: gentes da nossa gente que há meio século, sob o relento da invernia, traziam a voz rouca mas o espírito perfumado pela alegria esperançada do natal cristão:
“alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria /
já nasceu o deus-menino / filho da virgem maria...”
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Rancho Mirage, California
Dezembro, 2007